
"Ao colocar a máquina na tomada, a sensação foi que suas engrenagens soavam como uma orquestra. Milhares de fios entremeados formando um tecido coeso, a dança das linhas desenhadas e lisas, prontas para serem enlaçadas perfeitamente..."
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Em uma tarde despretensiosa, estava em mais uma visita a campo. Desta vez, o roteiro era desconhecido, iria visitar pela primeira vez uma família agricultora. Como em toda primeira vez, há um certo nervosismo em saber o que vai acontecer, algumas perguntas borbulham frente a linha da estrada no horizonte: como será o caminho? como as pessoas irão me receber e como receberão as ideias que vou apresentar?
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Neste dia, não posso evitar de dizer que foi um trecho longo e sinuoso que percorri até chegar à casa da família. Logo quem me recebeu foi uma mulher jovem, ela sentiu necessidade de se aproximar, estender a mão, observei rapidamente o seu sorriso simpático, suas roupas de trabalho forjados pelo tempo, o “puído”, como minha vó falava. Junto a ela, ao fundo avistei seu filho que tratava das vacas no estábulo. Uma curiosidade, avistei um objeto estranho ao lado do cocho dos animais. Me distraí por um instante ao avistar esse objeto, e, em um lapso de segundo, pensei que não sabia absolutamente nada sobre onde estava chegando.
A visita técnica foi precedida como naturalmente, primeiro um cafezinho em família, diálogos tímidos sobre assuntos familiares, não me surpreendia que muito alimento foi oferecido. Uma espécie de pacto de amizade, da rosca, ao queijo, logo nos encaminhamos aos trabalhos. Com fluidez percorremos a propriedade, a horta, coletamos solo, envolvemos toda a família e proseamos um bocado. Para minha alegria, finalizava esse dia de trabalho com uma sensação de dever cumprido.
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Antes de partir, mais um cafezinho. Parece que é no café (nesse caso no chá, pois não tomo café) que se iniciam as grandes histórias; é como um ritual de abertura do tempo, todos sentam em círculo, se olham, no compartilhar de uma mesa farta de alimentos locais, com muita memória e afeto. Ali soube da infância difícil dessa moça agricultora; seus filhos ouviam quietos e atentos.
Apesar da sua pouca idade (regulava com a minha), sua história foi muito dolorosa desde pequena. Violência, trabalho pesado, seu pai à moda antiga não tinha trator, e era o seu corpo que carregava o peso do mundo. Nas suas costas, ao levar cana morro abaixo e morro acima, trouxeram muitas dores e uma doença que não a permitia gozar de uma vida sem dores. A dor física deixou uma marca perpétua: a de conviver com o limite de estar viva, sem permitir um momento sequer o esquecimento de quem era para forjar quem poderia ser.
Ao adentrar nessa vida e história e refletir como na gritante maioria dos casos, são os homens os que encadeiam as situações de sofrimento para as mulheres que vivem no campo. Refleti como o patriarcado é uma estrutura sólida, ao mesmo tempo que se torna flexível no espaço e no tempo, feito uma teia estruturante da nossa sociedade. Já os nós da teia são as mulheres e meninas subjugadas a apertos que deixam, doendo e sem ar. Ufa!
Ao sair da casa, um ar de familiaridade distinto; mesmo acabando de nos conhecer, ao partilhar suas mazelas e vulnerabilidades, se estabelece um laço suave, como um fio recém colhido do algodoeiro. ​A esperança tomou conta desta moça ao se despedir. Afinal de contas, alguém novo estaria em sua casa, uma oportunidade de narrar a sua história. Não podia deixar de me mostrar uma grande invenção; desta vez, me levou prontamente à engenhoca que eu havia avistado ao chegar. Não é que a agricultora fez uma descoberta que abreviará a sua dor? Ao não sentir mais a “dor da enxada”, agora o seu novo ofício era ser tecelã.
A engenhoca era uma máquina simples; eu e a vaca pacienciosa no estábulo - que me acompanhava- observamos o mecanismo. Ao puxar um fio de malha e identificar os nós dos fios que passavam por ela, ao avistar o nó, a moça, com seus dedos pequenos e ágeis, desatava e apertava novamente o botão do movimento. Simbólico, pensei, esse movimento atento ao desfazer os nós. O melhor ainda estava por acontecer, me perguntei o que ela tecia?
Anexo ao estábulo, sob o mesmo teto de brasilite, havia uma antiga garagem (hoje o carro dormia no relento). Essa estrutura tinha muita história, já fora sua casa no início dos tempos, onde ainda as dores se faziam presentes, dia a dia.​Nesta sala, fui apresentada, junto a seus filhos que acompanhavam orgulhosos, à invenção inovadora: uma máquina que tecia tapetes. Esse era seu novo ofício. Não mais agricultora, tecelã.
Sua tia havia trazido para ela; esses tapetes iriam desse estábulo no interior de Santa Catarina para casas de classe média na terceira maior cidade da América Latina. Logística desse sistema maluco, rodar milhares de quilômetros para embelezar as casas ou aconchegar pés cansados, isso mal importava. Ela fez questão de me mostrar em movimento, também cada detalhe que fazia e as responsabilidades que os filhos realizavam para auxiliá-la. De repente, só observar e contar já não era suficiente.
Ao colocar a máquina na tomada, a sensação foi que suas engrenagens soavam como uma orquestra. Milhares de fios entremeados formando um tecido coeso, a dança das linhas desenhadas, lisas, limpas e prontas para serem enlaçadas perfeitamente. Em 10 minutos, tínhamos um tapete pronto. Com seus olhos castanhos satisfeitos, me mostrou todos os movimentos que precisavam ser realizados para que a orquestra acontecesse, indicando um a um seus detalhes e também dificuldades como maestra
Esse novo relacionamento do corpo-máquina, esse corpo que já tinha passado pelas mais diversas dores, já não doía mais como antes. A coreografia de linhas deu um novo sentido aos seus dias, e os fios tecidos eram feitos de sonhos nunca sonhados, adormecidos em uma infância rural. O seu novo ofício, a tessitura, liberta uma mulher redesenhando sua história. Me emocionei ao presenciar a cena, estava frente a uma tecelã do tempo.
