O CATADOR DE SONHOS
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"Nesse momento, catava os grãos de feijão branco como quem catava esperanças, dando vida à imaginação de outrora, lembrando-se do que poderia ser a partir do que se é.
Um catador de feijões que, na verdade, era um guardião de sementes que libertava sonhos na ponta dos dedos..."
Cena: Em um instante, um homem de 70 anos, sentado em uma cadeira, debruçado sobre uma mesa de madeira com tampo forrado com plástico branco, sob a luz de uma janela lateral, sozinho frente a um mar de feijões coloridos.
O homem que escolhia feijões como quem catava uma possibilidade de viver outra realidade que não a que estava condicionado. Exímio separador de feijões, escolhia em silêncio, os grãos brancos e os separava com tanta destreza que demonstrava o tempo de sua vida dedicado a tal ação.
Entre a multidão de grãos, vermelhos, pretos, rajados, amarronzados, pintados, acinzentados, mais de 130 cores misturadas e plantadas de forma conjunta. Aquele era resultado não apenas de uma colheita, mas sim de uma insistência em manter a mistura, quase uma teimosia continua em se surpreender com a diversidade, em continuar com o ato de bater os feijões e em ter soluções heterogêneas, seguida da paciência esdrúxula e certeira da seleção, tais combinações eram fatos que alimentam sua alma e vitalidade aos 70.
As dores crônicas e conhecidas no quadril davam lugar ao movimento perspicaz e ágil das pontas dos dedos, os olhos acompanhavam ávidos e o sorriso esboçado no canto dos lábios finos e ressecados, retratava a plenitude no ato repetitivo, por fim sentia-se vivo, somente por ser e estar totalmente presente naquele momento. Uma espécie de transe, meditação em movimento, repetição e contação de histórias, ressignificações.
Aquele momento era dele, apenas dele, sentia dificuldade em sair e se distrair desse instante, apartadas eram as outras desimportâncias do mundo. Na solidão do quarto, nesse fragmento de tempo o homem se deleita em poder ser outro, aqueles minutos representavam uma vida nova possível. As memórias escorrem, o passado brutal, os ferros atravessando seus ossos, acalambrado de dor e de imobilidade, nas sementes sua vontade desperta.
E, ao fundo, uma espécie de tremor, que foi se aclarando à medida que a atenção foi alocada, mesmo contra sua vontade (resistiu), na voz incisiva de sua esposa que o chamava ao fundo. Hesitou em ouvir, hesitou em se desconcentrar e abandonar seu nobre ofício. Nesse momento, catava feijões brancos como quem catava esperanças, dando vida à imaginação de outrora, lembrando-se do que poderia ser a partir do que se é.
O catador de feijões que, na verdade, era um guardião de sementes que libertava sonhos na ponta dos dedos.
Criador e criatura, a vida se multiplica.
As miudezas me importam.